Acerca da Tolerância

quarta-feira, janeiro 19, 2005

Acerca da Tolerância

“Acerca da Tolerância” constituiu o tema desenvolvido no Seminário I (1º Semestre) do Curso de Licenciatura em Filosofia, na Universidade dos Açores.
O objectivo geral era o de, atendendo sobre a significação etimológico-conceptual do termo e perspectivando-o na sua contextualização histórica, privilegiar-se a sua problematização ética contemporânea.
Neste plano verificamos que a noção de tolerância tem sido cada vez mais frequentemente utilizada com a consequente erosão do seu sentido, havendo por isso necessidade de defini-lo com maior exigência. Para tal, torna-se absolutamente necessário estabelecer limites para a sua evocação objectiva e rigorosa.



1. Sentido etimológico de tolerância

“Tolerância” provém do latim tolerantia que por sua vez vem de tolero, tolerare.
Tolero, tolerare significa “suportar”, “sofrer”, “manter”, “persistir”, “resistir” e “combater”. Tolerantia “corresponde à capacidade de persistir nas nossas opiniões, na vontade suportando a diversidade”.



2. Conceptualização histórica

“Tolerância” teve originariamente um sentido negativo consistindo na atitude de suportar o que se considera errado ou desagradável.
A título de exemplo, verificamos que na Antiguidade, com Cícero, a tolerância não se reportava a uma realidade física mas evocava uma dimensão moral - “a paciência direccionada a qualquer coisa negativa”; na Idade Média, com Tomás de Aquino, a tolerância era considerada apenas como uma atitude de transição para o acesso desejável a valores superiores; no Renascimento, com Nicolau de Cusa, é perspectivada como uma atitude interior profunda; finalmente na Modernidade, com Espinosa, a tolerância é entendida como a atitude de suportar as diferentes crenças religiosas.
É apenas com Locke, já no séc. XVII, que a tolerância ganha uma conotação positiva, como “resistência ao que é adverso”. A tolerância é perspectivada num plano religioso, na exortação ao respeito por todas as religiões, tendo em vista uma coexistência pacífica das sociedades. Afirma-se então a fé como matéria de consciência singular na exigência da separação entre Estado e Igreja.
Esta nova conotação positiva da “tolerância” é acentuada por Stuart Mill no séc. XIX que, através da advocacia da liberdade, considera que a tolerância como condição para o pluralismo de ideias, motor do desenvolvimento das sociedades. Diz este autor que é porque os indivíduos são, ou deveriam ser, soberanos de si mesmo e porque são todos diferentes, que a tolerância deve ser uma exigência numa sociedade bem regulada.



3. Problematização Contemporânea

Actualmente assiste-se a uma crescente pluralidade de sentidos de “tolerância”, os quais exemplificamos evocando alguns diferentes autores:
- David Heyds, na “Introduction” a Toleration – An Elusive Virtue(1996), considera que a “tolerância” é “uma virtude perceptual porque faz um compreender o outro”;
- John Horton, em “Toleration as a virtue” (1996) diz que “a tolerância pressupõe uma actividade intelectual deliberada”
- Fernando Savater, por sua vez, “ À quel engagement conduit la tolérance?”, em La tolérance, l’indifferance, l’intolérable (2001), considera que “a tolerância é uma norma para viver em democracia”.
- Françoise Héritier, em O Eu, o outro e a tolerância (1997), realça que a “tolerância” é mediadora essencial entre o eu e o outro;
- Julie Saada-Gendron, em La Tolérance (1999), cuja opinião assenta sobre uma concepção de ideia de homem, isto é, “tolerância” implica o respeito pelo outro e não a aceitação das suas opiniões.
Assim, ao tentarmos compreender a “tolerância”, constatamos que se trata de um conceito não só problemático mas também paradoxal, na medida em que é absolutamente necessário, de modo a possibilitar a coexistência pacífica entre as pessoas numa qualquer comunidade, mas também de definição impossível, na medida em que a noção de “tolerância” tem de aceitar a própria “intolerância”: afinal, não podemos tolerar a intolerância!
A tolerância só subsiste entre limites. A tolerância só existe para além do absolutismo, no reconhecimento de que ninguém possui uma verdade absoluta, e para aquém do indiferentismo, na afirmação da hipocrisia de uma neutralidade ética.
Partindo desta definição de “tolerância”, ensaiámos a possibilidade de a aplicar a actuais situações concretas problemáticas, nomeadamente à prostituição, aborto e despenalização das drogas leves.


7 Comments:

  • «A tolerância só existe para além do absolutismo, no reconhecimento de que ninguém possui uma verdade absoluta, e para aquém do indiferentismo, na afirmação da hipocrisia de uma neutralidade ética».

    As palavras mais importantes da/para a nossa vida são equívocas.
    A «verdade» está aqui tomada como uma referência ideal à qual dizem respeito todos os discursos proferidos? A mentira seria então a tentativa de ocultação desse referencial a propósito de uma ambição que não cabe na verdade? O termo «tolerância» participa num sistema de referências em completa relatividade, ou seja, em que tudo se tece sem escala e, por isto, sem diferenciação de valor?

    «Um Diálogo acerca da Tolerência» é uma sugestão para a qual gostaria de contribuir.

    By Anonymous Anónimo, at 3:14 da tarde  

  • O meio-termo da tolerância, onde esta encontra o seu lugar e os seus limites, onde apenas faz sentido, é precisamente entre o absolutismo - em que não poderá haver uma imposição de verdades absolutas (até porque não as há), e o indiferentismo - em que o excesso de tolerância é resultado duma passividade do sujeito e o leva à indiferença, e quase arriscaríamos a dizer, a um alheamento de valores. Há que, ao tolerar, manter uma mediação entre 2 sujeitos, uma actividade não estática mas dinâmica na comunicação. A tolerância não pode nem deve estar ausente de sentido. Deverá sim, sofrer um constante processo de formação e adaptação a qualquer situação/assunto que a requira.

    A "verdade" deveria ser tomada como um ideal para qualquer discurso mas principalmente, para qualquer acção que vise o bem comum, não apenas o da esfera pessoal. Quando falamos em "verdade", consideramos o mais perto ou o que mais se aproxime dela, a verosimilhança, a união consensual de duas meias verdades, ou mesmo o que resulte da sua utilidade, sempre considerando o bem comum para o interesse das partes.
    A mentira, não é de todo, uma ocultação da verdade porque não a "apaga", é uma deturpação ou um desvio que serve outros interesses ou ambições, e que temos a pretensão de considerar secundários. A mentira não é uma virtude nem um valor, é uma deficiência de formação que remetemos para o campo da psicologia. Há no entanto, algumas mentiras que são toleráveis - a chamada "mentira razoável" no domínio político - é tolerada porque visa o bem comum, a sua omissão beneficia mais do que prejudica (na óptica do político).
    Pode-se dizer que a tolerância participe num sistema relativizado quanto ao assunto, às crenças, às pessoas, mas não às referências. Não há escalas ou medições de valores, mas há limites e meios-termos que se encontram através duma mediação que envolve uma predisposição das partes, a esperança está sempre nas pessoas envolvidas e na boa fé que depositamos nelas.
    Há sempre referenciais acessíveis ao ser humano. Não estamos também nós aqui a tornar o discurso menos equívoco? A ideia de contribuir para "um diálogo sobre a tolerância" já diz tudo. Será bem vindo.
    Cumprimentos.

    By Blogger RD, at 8:59 da tarde  

  • Ana,
    A tolerância é uma atitude racional, ponderada e responsável, autónoma e livre, voluntária, deliberada e por isso - consciente.
    A tolerância não pertence ao domínio da psicologia do inconsciente.
    Cumprimentos.

    By Blogger RD, at 9:06 da tarde  

  • Porquê remeter a mentira para o campo da psicologia?

    By Anonymous Anónimo, at 11:41 da tarde  

  • Pegasus, acha que a mentira pode ser mais bem explicada por que ciência?
    Eu diria que há explicação filosófica, mas que passa por uma generalização, ou seja, não será específica a cada caso - daí remeter para o campo da psicologia.
    Mas aqui lhe deixo uma frase que acho que diz muito.

    "A origem da mentira está na imagem idealizada que temos de nós próprios e que desejamos impor aos outros" Anais Nin.

    Cordialmente.

    By Blogger RD, at 12:46 da manhã  

  • Antes de mais, quero agradecer a resposta, que me clarificou o Vosso ponto de vista.
    De facto, estou inteiramente de acordo.
    Relativamente á tolerância, esta é gratificante e nutriente para o sujeito quando se enquadra no seu próprio referencial de valores.
    Como tal, algo que ultrapasse essa fronteira terá o enfâse colocado na capacidade de resiliência individual, estando a resposta directamente relacionada com a necessidade de regulação homeostática do sujeito. É um processo dinâmico, na medida em que aos movimentos auto-correctivos está subjacente uma mudança.

    Atenciosamente

    By Anonymous Anónimo, at 11:20 da tarde  

  • É um processo dinâmico, sem dúvida. Envolve antes de mais, uma predisposição do próprio sujeito para essa abertura... Que é o que mais falta.
    Todos temos, como bem disse, o nosso referencial de valores, mas há que ter cuidado e apostar numa formação contínua de conhecimento, para que este [referencial] cresça saudável. Doutra forma estagnamos em preconceitos e a porta para a tolerância fecha-se.
    Cumprimentos.

    By Blogger RD, at 12:42 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home