Acerca da Tolerância

quarta-feira, janeiro 19, 2005

Acerca da Tolerância

“Acerca da Tolerância” constituiu o tema desenvolvido no Seminário I (1º Semestre) do Curso de Licenciatura em Filosofia, na Universidade dos Açores.
O objectivo geral era o de, atendendo sobre a significação etimológico-conceptual do termo e perspectivando-o na sua contextualização histórica, privilegiar-se a sua problematização ética contemporânea.
Neste plano verificamos que a noção de tolerância tem sido cada vez mais frequentemente utilizada com a consequente erosão do seu sentido, havendo por isso necessidade de defini-lo com maior exigência. Para tal, torna-se absolutamente necessário estabelecer limites para a sua evocação objectiva e rigorosa.



1. Sentido etimológico de tolerância

“Tolerância” provém do latim tolerantia que por sua vez vem de tolero, tolerare.
Tolero, tolerare significa “suportar”, “sofrer”, “manter”, “persistir”, “resistir” e “combater”. Tolerantia “corresponde à capacidade de persistir nas nossas opiniões, na vontade suportando a diversidade”.



2. Conceptualização histórica

“Tolerância” teve originariamente um sentido negativo consistindo na atitude de suportar o que se considera errado ou desagradável.
A título de exemplo, verificamos que na Antiguidade, com Cícero, a tolerância não se reportava a uma realidade física mas evocava uma dimensão moral - “a paciência direccionada a qualquer coisa negativa”; na Idade Média, com Tomás de Aquino, a tolerância era considerada apenas como uma atitude de transição para o acesso desejável a valores superiores; no Renascimento, com Nicolau de Cusa, é perspectivada como uma atitude interior profunda; finalmente na Modernidade, com Espinosa, a tolerância é entendida como a atitude de suportar as diferentes crenças religiosas.
É apenas com Locke, já no séc. XVII, que a tolerância ganha uma conotação positiva, como “resistência ao que é adverso”. A tolerância é perspectivada num plano religioso, na exortação ao respeito por todas as religiões, tendo em vista uma coexistência pacífica das sociedades. Afirma-se então a fé como matéria de consciência singular na exigência da separação entre Estado e Igreja.
Esta nova conotação positiva da “tolerância” é acentuada por Stuart Mill no séc. XIX que, através da advocacia da liberdade, considera que a tolerância como condição para o pluralismo de ideias, motor do desenvolvimento das sociedades. Diz este autor que é porque os indivíduos são, ou deveriam ser, soberanos de si mesmo e porque são todos diferentes, que a tolerância deve ser uma exigência numa sociedade bem regulada.



3. Problematização Contemporânea

Actualmente assiste-se a uma crescente pluralidade de sentidos de “tolerância”, os quais exemplificamos evocando alguns diferentes autores:
- David Heyds, na “Introduction” a Toleration – An Elusive Virtue(1996), considera que a “tolerância” é “uma virtude perceptual porque faz um compreender o outro”;
- John Horton, em “Toleration as a virtue” (1996) diz que “a tolerância pressupõe uma actividade intelectual deliberada”
- Fernando Savater, por sua vez, “ À quel engagement conduit la tolérance?”, em La tolérance, l’indifferance, l’intolérable (2001), considera que “a tolerância é uma norma para viver em democracia”.
- Françoise Héritier, em O Eu, o outro e a tolerância (1997), realça que a “tolerância” é mediadora essencial entre o eu e o outro;
- Julie Saada-Gendron, em La Tolérance (1999), cuja opinião assenta sobre uma concepção de ideia de homem, isto é, “tolerância” implica o respeito pelo outro e não a aceitação das suas opiniões.
Assim, ao tentarmos compreender a “tolerância”, constatamos que se trata de um conceito não só problemático mas também paradoxal, na medida em que é absolutamente necessário, de modo a possibilitar a coexistência pacífica entre as pessoas numa qualquer comunidade, mas também de definição impossível, na medida em que a noção de “tolerância” tem de aceitar a própria “intolerância”: afinal, não podemos tolerar a intolerância!
A tolerância só subsiste entre limites. A tolerância só existe para além do absolutismo, no reconhecimento de que ninguém possui uma verdade absoluta, e para aquém do indiferentismo, na afirmação da hipocrisia de uma neutralidade ética.
Partindo desta definição de “tolerância”, ensaiámos a possibilidade de a aplicar a actuais situações concretas problemáticas, nomeadamente à prostituição, aborto e despenalização das drogas leves.


Drogas Leves: A Felicidade em Self-Service

Reflexão Crítica Sobre a Despenalização das Drogas Leves


1 – Despenalização das Drogas Leves


1.1 – As substâncias usualmente consideradas como drogas leves:

1.1.1- O que são e o que fazem?

Habitualmente chama-se droga a todas as substâncias, susceptíveis ou não de aplicações médicas, que se usam (por auto-administração) para fins distintos dos que são legítimos em medicina, e que podem produzir uma modificação – fisiológica ou psíquica – no organismo humano.

As drogas produzem um estado físico ou psíquico que pode ser prazenteiro ou desagradável. No primeiro caso costumam levar progressivamente à necessidade de administrar doses mais elevadas, criando uma situação de "dependência" no consumidor.

A dependência é uma necessidade mais ou menos irresistível - de origem física ou psíquica ou ambas - de continuar a consumir a droga que a gerou. Manifesta-se de modo ostensivo quando se interrompe repentinamente a administração da droga, produzindo-se então aquilo que se conhece por "síndromo de abstinência". As manifestações desse síndromo (grupo dos sintomas capazes de caracterizarem uma doença) variam muito de uns sujeitos para outros (em função da idade, tolerância à droga, tipo de substância, etc.); em todos eles, no entanto, aparecem alterações psicopatológicas mais ou menos importantes e inclusivamente graves. A dependência é por vezes tão forte que o drogado se sente arrastado a empregar todos os meios, lícitos ou ilícitos, para satisfazer a necessidade que tem.

Na linguagem comum, designa-se por drogas leves a marijuana, o haxixe, anfetaminas e alguns analgésicos e tranquilizantes.



1.1.2 – Formas de consumo de drogas

Uso esporádico
É a administração da droga em dose única ou de forma esporádica, ocasional. Nestas condições, se se faz numa dose pequena, não costuma originar nenhuma predisposição ou necessidade de continuar a consumir a droga. Os efeitos que produz, quando é consumida por pessoas normais – coisa muito pouco frequente – são autocontroláveis, ainda que aqui haja excepções na forma de resposta do sujeito. Mas não convém esquecer que o uso da droga está normalmente em relação com conflitos e dificuldades da personalidade e com problemas morais; é difícil que uma pessoa centrada na vida, equilibrada e com costumes sãos, caia neste desejo de experimentar o que sabe que, com facilidade, pode ter graves consequências. De qualquer modo, é preciso dar a conhecer o perigo que supõe iniciar-se no consumo destes produtos (por curiosidade ou desconhecimento dos seus efeitos) pensando falsamente que as drogas leves são inofensivas.


Uso habitual
É o uso da droga de uma forma continuada. Não é fácil determinar o momento em que se passa da administração mais ou menos periódica ao uso continuado ou abuso da droga: depende das pessoas, das quantidades ingeridas e da periodicidade do uso e da composição das substâncias empregadas – questão esta impossível de conhecer na prática, dado o carácter clandestino do mercado.
Dado que o organismo se acostuma à droga, para que esta produza os seus efeitos é necessário que a sua administração se faça em doses maiores e com maior frequência. A este fenómeno chama-se "tolerância": o organismo necessita progressivamente de uma dose maior – uma vez que se habituou a essa substância – para que o sujeito obtenha as mesmas sensações. O sujeito, em consequência, torna-se cada vez menos dono de si; a droga aumenta a sua tirania e está-se a caminho de passar a depender dela, com perigo próximo de intoxicação. Ou, pelo menos, de necessitar das drogas "duras", que com rapidez levam à intoxicação. A medicina mostra que os efeitos da marijuana são graves, apesar da sua promoção como inócua (inclusivamente chegam a afirmar falsamente que é menos grave que o álcool e o tabaco).


Intoxicação
É o estado de situação produzido pelo abuso da droga. As repercussões no organismo são muito graves, chegando a produzir a morte. Não se pode esquecer a potenciação dos seus efeitos com álcool, barbitúricos e outras drogas.



1.1.3 – Efeitos do consumo das drogas leves

Os efeitos produzidos por diferentes drogas leves são parecidos. Por isso são enumerados conjuntamente.

Uso esporádico
Os efeitos que produz a administração da droga em doses "normais" (não altas) e quando esta se toma em dose única ou sem chegar ao abuso são:
- Estado de ânimo: num primeiro momento, sensação de bem-estar; facilidade de expressão verbal; mudanças qualitativas nas capacidades perceptivas e sensoriais. Depois, quando se passa o momento eufórico, depressão psíquica; disforia; fadiga. - Capacidade de trabalho: maior rendimento naqueles sujeitos que quando a tomam se encontram sem fadiga; exaltação ou inibição de certas destrezas psicomotoras; reduz a fadiga e a insónia.
- Sexualidade: aumento da sensibilidade, particularmente nas mulheres, inicialmente, mas seguida de embotamento, apatia, frigidez. Se a dose é alta, nos homens pode produzir impotência. Aumento da fantasia.
- Audição: reduz a agudeza auditiva.
- Sistema cardiovascular: taquicardia; subida da tensão arterial; vasoconstrição periférica.
- Irrigação cerebral: vasoconstrição das artérias cerebrais.

É interessante destacar que o uso esporádico de drogas leves costuma apresentar-se sob o pretexto de se pôr em forma. Na realidade, o que muitas vezes se oculta sob este pretexto é uma depressão leve ou certas crises de ansiedade e desespero perante as frustrações de cada dia, que o sujeito tolera muito mal. No entanto, não se valorizam do ponto de vista moral os efeitos da apatia, da depressão psíquica, a diminuição da capacidade de concentração, os riscos de incorrer em pecados de luxúria, não só pelo efeito afrodisíaco de algumas delas, como pela obnubilação de consciência (obscurecimento e afrouxamento do pensar) que produzem.

Uso habitual
Os efeitos que produz o uso habitual da droga são os seguintes:

- Estado de ânimo: diminuição da tolerância ao efeito eufórico. Disforia crescente: ânimo deprimido; irritabilidade; suspicácia (desconfiança); fobias; apatia. Mudança brusca até psicose paranóica.
- Rendimento: diminuição progressiva do rendimento. Diminuição da memória e da capacidade de concentração.
- Estado vigil: reduz a sensação de fadiga durante os estados de privação do sono. - Sexualidade: gradual redução da excitabilidade sexual nos homens: tendência à impotência. Hiperexcitabilidade ou frigidez sexual nas mulheres, segundo os casos.
Como consequência, tende-se a aumentar a dose e a periodicidade no consumo da droga a fim de conseguir os efeitos (no fundo - dizem - são só 'sensações') próprios do estado de euforia motivados pela sua administração. As pessoas que se encontram nesta situação, tendem a infravalorizar os aspectos negativos que foram assinalados, apoiando-se nos comentários doutros iniciados, que lhe tornam muito difícil escapar a essa dependência.
Não deve omitir-se, entre os efeitos, a desorganização considerável da estrutura da personalidade que submete a inteligência à servidão das chamadas 'sensações', nem sempre prazenteiras, e aniquila a capacidade motivadora de qualquer valor ou ideal, tornando impossível viver a virtude da temperança e outras virtudes.

Intoxicação
- Psicose paranóica: alucinações auditivas e visuais. Delírio paranóico sem estado confusional. Grande estado de ansiedade. Impulsividade. Agressividade. Actos homicidas.
- Conduta estereotipada: actos compulsivos de tipo repetitivo, descuidando o próprio corpo, ingerindo um único tipo de alimentos, etc.
- Síndrome coreico: hipotonia muscular nas extremidades. Movimentos involuntários faciais, de mãos, cabeça (rotação, flexão, extensão).
- Síndrome de excitação: quadro de excitação psicomotora acompanhado de aumento de pressão sanguínea. Taquicardia. Hipertermia. Dilatação pupilar. Pele pálida e fria. Evolução a um quadro letal por colapso circulatório, etc.
- Síndrome disautonómico: grande ansiedade. Taquicardia motora. Pele pálida. Náuseas; vómitos. Convulsões generalizadas. Coma. Choque cardiovascular.
- Acidentes cerebrovasculares: hemorragia cerebral. Cefaleia intensa. Hemiparestesia. Hemiparesia.
- Condutas desajustadas e anti-sociais: o uso habitual das drogas leves bloqueia a nível do sistema nervoso a relação que articula os nossos actos com as suas consequências.

O que antes era uma fonte motivadora, transforma-se agora em indiferença. Inclusivamente, após seis meses ou um ano sem consumir estas substâncias, o "indiferentismo", a apatia, o aborrecimento persistem. Nada apetece e nada satisfaz. É muito difícil que algum trabalho se destaque como uma tarefa com sentido, gratificadora ou que minimamente satisfaça. As condutas desajustadas e socialmente desadaptadas ou anti-sociais costumam ser uma constante neste período de desabituação, que pode prolongar-se durante um ou vários anos.


1.2 – Problematização Social

1.2.1 – Posição a favor

Os argumentos pela despenalização do consumo de drogas leves são essencialmente contra as sanções previstas na lei. As sanções contra o uso de droga limitam impropriamente a liberdade dos adultos de usarem substâncias que não são mais perigosas que outras actualmente disponíveis;

A criminalização do consumo das drogas não conseguiu reduzir significativamente o consumo;
As sanções aumentam o risco de consumo de um mercado ilícito;
A criminalização do uso da droga induz os jovens ao consumo e à venda (efeito da “fruta proibida”);
A proibição do consumo de droga é causa da maioria dos crimes contra pessoas e contra a propriedade.


Eis alguns efeitos da proibição que a despenalização pode eliminar:

A proibição da produção de droga gera um primeiro efeito: aumenta o preço. Este passa a reflectir, não apenas todos os custos de produção, mas também a compensação exigida pelo produtor para cobrir o risco de cair nas malhas da lei. Quanto mais dura for a lei maior é o risco e maior será o preço. A despenalização eliminaria este risco e faria baixar o preço.
Com a despenalização seriam as empresas farmacêuticas que produziriam e comercializariam as diferentes variedades de droga, o que faria com que o negócio deixasse de ser compensador para os traficantes. A baixa de preços também faria com que a necessidade dos toxicodependentes recorrerem ao crime, para adquirirem o produto, diminuísse.
A proibição desencoraja os consumidores a admitirem publicamente o seu estado de dependência em relação à droga e de procurarem ajuda junto da família, dos amigos e dos profissionais de saúde. Com a despenalização muitos toxicodependentes procurariam livremente ajuda profissional, como acontece com os alcoólicos e os consumidores de tabaco. As associações privadas, como os Alcoólicos Anónimos e públicas tenderiam a surgir espontaneamente e um número maior de toxicodependente acabaria por se subtrair ao vício.
A proibição aumenta os perigos que o consumo de droga pode causar a terceiros. Quantos acidentes de automóvel não serão causados por condutores sob os efeitos da droga? Nas estatísticas oficiais, zero. A despenalização da droga permitiria actuar para prevenir os efeitos sobre terceiros resultantes do seu consumo. Por exemplo, em relação aos automobilistas, seriam postos em prática testes semelhantes àqueles que existem em relação ao álcool.

Se o consumidor deixar de ter de recorrer ao mercado clandestino, está facilitado o trabalho de reinserção social desse cidadão. Fora da espiral dos preços do mercado paralelo, o consumidor terá condições de se ver livre do contacto com o crime e esse pode ser o primeiro passo em direcção ao tratamento e à integração plena numa sociedade que aceite as drogas como elas são, sem falsos preconceitos.

1.2.2 – Posição da política de redução de danos e de descriminalização

O programa de Controle de Drogas da ONU (UNDCP, 1997)[1] considera que, entre a proibição estrita e a legalização, existam outras possibilidade e entre elas aparecem a política de redução de danos e a descriminalização. A proibição estrita é o modelo norte-americano de guerra às drogas, no qual não é permitido nem o uso terapêutico da Cannabis. A legalização, por sua vez, compreende que a posse e a venda das drogas ilegais passam a ser legais, como o álcool e o tabaco, e para a qual não existe, actualmente, nenhum país praticando.
Entre as posições intermediárias, a de “Redução de Danos” diz-se mais viável porque assume que:
A lei criminal deve ser usada somente para reprimir o tráfico
O consumo ou a posse de drogas para uso pessoal não devem ser motivos de processo criminal
A ajuda não deve estar vinculada à abstinência, a assistência de sobrevivência deve ser o primeiro objectivo
Deve haver uma separação entre a Cannabis e as outras drogas ilegais
O uso, compra e posse da Cannabis devem ser descriminalizados
A Cannabis e os seus derivados devem ser colocados no lado legal
Prescrição de drogas para dependentes sob controlo médico (Declaração de Frankfurt, UNDCP, 1997).

Esta posição é tomada por considerar que as relações entre as leis e o uso de drogas são complexas e podem ser melhor compreendidas dentro do paradigma da escolha racional (MacCoun, 1993). Este modelo mostra a existência de três mecanismos de influência: o risco de punição, a disponibilidade da droga e o preço.
Associadas a estes mecanismos existem as contribuições da Psicologia Social:
O efeito da “fruta proibida”: Quanto mais escasso ou restrito é o objecto, mais atractivo se torna
Normas sociais informais: Os adolescentes bebem porque os seus amigos bebem
Sanções informais: Humilhação e perda de relações, que se seguiriam a um processo criminal
Estigmatização: É um factor que pode fazer com que o indivíduo, uma vez processado por alguma violação de leis de drogas, fique de vez do lado “errado” da sociedade.

Levando em consideração o modelo de escolha racional e as posições da Psicologia Social, a descriminalização pode levar ao seguinte cenário:
Mantém-se a mesma situação de droga, isto é, ilegal, e desta forma não resolve a questão da produção, compra e venda
O preço e a oferta devem permanecer os mesmos
Reduzem-se os efeitos de contenção legal de uso e da estigmatização mas não são eliminados
O facto da droga permanecer ilegal provavelmente fará com que muitas pessoas a continuem a evitar (efeito simbólico de transposição da legalidade) e outros a procurem (efeito da fruta proibida)
Os controles sociais informais provavelmente manter-se-ão.
Os estudos sobre o período de descriminalização da Cannabis nos EUA, na década de setenta do século passado, mostraram que o consumo permaneceu estável e nos registos das emergências médias houve um aumento do uso desta substância, mas este aumento foi acompanhado da diminuição das outras drogas ilegais.
1.2.3 – Posição contra

“(...) Quando os leaders de Esparta foram visitar o Oráculo de Delfos, uma das perguntas que lhe fizeram foi quando acabaria o mundo. E a resposta do Oráculo foi: "Quando o ignorante fala sobre conhecimento, a prostituta fala sobre honra, e o tirano fala sobre justiça".


O uso de drogas deve constituir um crime, porque:
Fazem mal à saúde
A Cannabis em grandes excessos pode provocar cancro, bem como esquizofrenia, o consumidor perde a ligação com o real, torna-se alheado de si mesmo. Além disso, o uso de drogas reduz a auto-estima e aumenta a hipótese de depressão.
Causam dependência
A Cannabis causa vício com uso frequente. Estatísticas indicam que até 10% dos consumidores de Cannabis ficam dependentes.
Incitam à violência
Na Holanda, 5 000 dos 25 000 dependentes de drogas são responsáveis por cerca de metade dos crimes leves. Na Inglaterra, eles respondem por 32% da actividade criminal.
As mais leves levam às mais pesadas
Quase todos os consumidores de drogas pesadas já consumiram Cannabis. O governo americano diz que fumar Cannabis aumenta em 56% a hipótese de consumo de outra droga.
Sem punição, o uso vai aumentarA Holanda liberou o uso da Cannabis e este subiu 400%. Nos Estados Unidos, o uso de álcool caiu 50% com a Lei Seca (1920-33) e só voltou ao nível anterior em 1970.
Causam prejuízo à sociedade
Consumidores de drogas utilizam mais recursos do sistema público de saúde e têm produtividade menor.
Pervertem quem as usa
O uso da droga transforma pessoas produtivas em indolentes, responsáveis em inconsequentes, cidadãos em párias.

Usamos aqui como referência a droga Cannabis, por ser aquela mais escolhida e usada entre as leves e não prescrita pela ordem médica.
As cannabináceas são compostos derivados de uma planta denominada Cannabis Sativa, que se cultiva em grandes zonas geográficas, uma vez que se adapta tanto a climas quentes como temperados, inclusive secos, sempre que tenha a necessária provisão de água.
A sua inclusão nos textos de medicina e farmácia é bastante frequente, sendo a primeira referência a da farmacopeia do imperador Shen Nuna (5.737 anos A.C.). É também citada nos textos sagrados do hinduísmo, especialmente no Atharva Veda (3.000 anos A.C.), talvez introduzido pelos indo-europeus procedentes da área da Cannabis. No ocidente foi sempre uma planta muito popular, defendida por Diaconides e mais tarde, com muito ardor, por Laguna e Galeno. Em todo o caso, as indicações clínicas, como em todas as velhas farmacopeias, são um pouco confusas à luz dos nossos actuais conhecimentos, mas em todas elas parece ser comum a ideia de que é uma planta que ajuda a mitigar o mal-estar provocado por "desarranjos" cíclicos ou crónicos.Também é uma das primeiras drogas de que temos um testemunho escrito sobre o seu consumo psicoactivo. Heródoto, na "História das Guerras Médicas" conta como os Escitas, (2.500 A.C.) que povoaram a zona de origem da planta, se intoxicavam com ela.
A preferência por ela ao longo da história é constante, surgindo como marcos fundamentais, primeiro a sua expansão no mundo islâmico nos séculos XII e XIII, em parte devido ao movimento ismaelita e em particular pela seita dos hachixins; segundo, a sua ligação ao estado Mameluco no Egipto, tolerante com a utilização da Cannabis como um sinal exterior de diferença entre os integrados e os excluídos da sociedade, cuja descrição aparece nas "Mil e uma Noites" e, finalmente, a campanha de Napoleão no Oriente, que reintroduziu a Cannabis nos círculos letrados europeus. Este último acontecimento foi a catapulta para que esta droga, que já estava ligada a uma forma de hegemonia cultural na Europa, configurasse um complexo socio-cultural que, a partir dos anos 60 e dos movimentos de contra-cultura, se expandiu por todo o planeta.

Há três formas de consumo: "marijuana ou erva", preparada a partir das folhas secas, flores e pequenos troncos da Cannabis Sativa; "haxixe", que se elabora prensando a resina da planta fêmea e se transforma numa barra de cor castanha, com o nome coloquial de "chamom". O seu conteúdo em THC (até 20%) é superior ao da marijuana (de 5% a 10%), pelo que a sua toxicidade é potencialmente maior. Finalmente, existe um liquido concentrado conhecido como "óleo de cannabis ou óleo de haxixe"; obtém-se misturando a resina com um dissolvente, como a acetona, o álcool ou a gasolina, que se evapora em grande medida e dá lugar a uma mistura viscosa, cujas quantidades em THC são muito elevadas (até 85%).Já que o THC não se dissolve na água, as únicas formas de consumo para os seres humanos são a ingestão e a inalação. Normalmente fuma-se misturada com tabaco em forma de cigarros feitos à mão. O fumo da Cannabis alcança altas temperaturas, pelo que os seus utilizadores colocam no cigarro grandes filtros com a finalidade de evitar queimaduras na garganta.Outra forma de fumar a Cannabis é com cachimbos feitos especialmente para esse fim. No entanto, em algumas culturas próprias da África ou do Caribe persiste a velha prática de beber tisanas feitas com esta droga e água. Apesar do seu sabor ser amargo, é utilizado como ingrediente em doçaria e rebuçados.Os componentes químicos da planta são muitos, sendo os mais conhecidos os cannabináceos e, concretamente o tetrahidrocannabinol (THC), responsável por quase todos os efeitos característicos destas substâncias.As cannabináceas são rapidamente absorvidas pelo pulmão ou pelo tracto gastrointestinal. A sua duração média é elevada, devido à sua grande liposolubilidade.São assimilados pelas gorduras do organismo, libertando-se depois lentamente no plasma, onde permanecem durante muito tempo. Por este motivo, pode ser detectado na urina dos grandes consumidores, mesmo semanas depois de estes abandonarem o consumo.No SNC (Sistema Nervoso Central), o THC actua sobre um receptor cerebral específico, que está distribuído de forma irregular, sendo a maior concentração nos gânglios basais, hipocampo e cerebelo. Descreveu-se uma substância endógena, denominada anandamida (derivada da palavra sânscrita ananda, que significa arrebato, felicidade), que se junta aos receptores das cannabináceas.

2 – Sentido de Tolerância adoptado

Segundo a opinião da Prof.ª Dr.ª M.ª do Céu Patrão Neves, no artigo “Tolerância: Entre o absolutismo e o indiferentismo morais”, a tolerância é hoje, cada vez e mais do que nunca, a salvação para a organização das sociedades e para a paz internacional. Deverá ter lugar entre o absolutismo e o indiferentismo, de modo a que não perca sentido e/ou se suprima. A globalização e o pluralismo por nós partilhado, bem como todo o tipo de relações entre o «eu e o outro» é a prova real de que há uma necessidade a ser trabalhada – a aceitação da diferença por meio de uma educação exigente para com nós próprios.
Assim sendo, diz a autora, fugimos ao absolutismo porque interessa uma aceitação do outro, mas ainda há que ter cuidado em não aceitar tudo de uma forma dogmática e com permissividade absoluta, correndo o risco de se resvalar para o campo da indiferença moral. “A tolerância só o é verdadeiramente na confluência de três aspectos distintos, a desaprovação em relação a algo, capacidade de intervenção nessa realidade alterando-a e abstenção de o fazer em nome de valores tidos por preponderantes.”[1] Ser-se tolerante é encontrar um meio-termo que permita o relacionamento pacífico entre as diferentes pessoas e que só se cumprirá, se estas, por isso fizerem. A tolerância é produto do «fazer-se» do homem ao longo da sua aprendizagem vivencial, do seu processo de personalização. Considerando que a verdade absoluta tenha perdido sentido e que não haja quem a possua, a única atitude possível a ter é ser-se tolerante para que haja uma afirmação da identidade do eu, do outro e de ambos. Afinal, só o respeito pela diferença é que faz com que se reconheça o outro como sendo «outro» diferente de mim. Esta virtude – a tolerância – implica e exprime uma tendência ou disposição, que nos permite acolher a diferença sem abdicar dos nossos valores e deixa a porta aberta para o acolhimento de novas ideias.

Considerando a opinião de Jean-Marc Trigeaud, em Justice et Tolérance, pela qual o autor defende o repensar da tolerância, acha que esta foi abusada e que caiu em extremismos de intolerância concreta, diz que tem que haver limites para o antigo modelo ainda em uso, do “vive e deixa viver”. Diz o autor que a tolerância necessária é aquela em que devemos ter uma postura genericamente tolerante e que na tolerância excluída, ter atenção aos conteúdos, não ser tolerante para tudo. O maior problema da tolerância é ser vista como uma forma, formal e inadaptada à concepção actual, pois já não dá respostas às necessidades do mundo de hoje. De uma forma ampla, a tolerância é a forma de exprimir opiniões e portanto temos que estabelecer limites e arranjar critérios, e para que tal seja possível, na sua base, terá que estar sempre a concepção da ideia de homem, só ela legitima a tolerância fundamentando a defesa do valor em causa. Num primeiro limite esta concepção da ideia de homem, é aquela que procura cognitivamente a verdade da pessoa humana e esse limite pode afastar a verdade incapaz de justificar, mas não tem que justificar sempre a verdade de alguma forma, sob o risco de se cair no dogmatismo. Num segundo limite, terá que se ter presente a ideia ou imagem conceptual que se tem do homem ao longo do tempo.

Um outro autor escolhido terá sido Julie Saada-Gendron. A autora na introdução da sua obra La Tolérance, e cremos que um pouco em complemento do autor anterior, faz menção à concepção de ideia de homem, do que o constitui na sua dimensão humana. Diz a autora que a tolerância tem a ver com a concepção moral do homem, que há um compromisso entre a nossa concepção moral com a concepção de homem. Só assim saberemos o que é admissível ou não nos julgamentos que possamos fazer. Ou seja, consoante a ideia que temos do ser humano como semelhante e como pessoa que é, maior ou menor o respeito a dar-lhe, e Julie Saada-Gendron refere-se às pessoas, não às suas atitudes, que para ela, serão sempre discutíveis. Podemos respeitar o outro sem contudo aceitar as suas opiniões, são coisas distintas. Tolerar ideias não implica que se tolere a pessoa e vice-versa. “Viver com” é uma atitude muito mais exigente do que tolerar, e quando se “vive com”, respeita-se, apesar de não termos que tolerar as opiniões.
A tolerância não é neutralidade de valores, obriga a uma racionalização de valores, o que é tolerado não constitui de forma alguma um direito. O permitir não quer dizer que se tolere e quem tolera não quer dizer que permita. O que é tolerado está numa zona de silêncio do direito, toleramos o que não temos direito de decidir, está no silêncio da lei.

Françoise Héritier também foca a importância da tolerância como mediadora essencial entre dois pólos, o eu e o outro, e como um meio termo dinâmico que apresenta actividade entre eles.
Este meio termo, que está entre o absolutismo e o indiferentismo já não é estático, existe uma mediação, proximidade e trabalho ou interactividade entre os pólos. No simples meio-termo tínhamos duas atitudes, agora temos com a mediação duas pessoas, e portanto torna-se completamente diferente porque entre duas pessoas há como que um canal estabelecido entre elas, esta opinião está também em consonância com Julie Saada-Gendron, já que esta autora também nos elucidou sobre a importância do respeito entre pessoas e não atitudes.
Para Françoise Héritier a “revolta da consciência” é no fundo uma consciência moral actuante, é a forma de se mostrar a criticidade e o pensamento activo. Diz a autora que sob a condição “(…) de que haja uma tomada de consciência individual e colectiva, uma vontade política internacional e o aperfeiçoamento de sistemas educativos que ensinem a não odiar, fundando-se, em particular, na consciência «espontânea» do justo e do injusto na criança”, que poderiam ser estas coordenadas a viabilizarem uma hipotética ética universal. A opinião pode-nos parecer uma mistura de boa vontade com ingenuidade mas cremos que só através desta revolução individual e também colectiva da consciência, de forma a sensibilizar o meio político, que é quem no fundo decide a ordem social, que as mudanças a nível ensino possam criar e recriar novos valores mais atentos e pertinentes na sociedade.


2.1 – Justificação da escolha

Tivemos o cuidado de escolher os autores, a nosso ver, mais marcantes no que respeita à defesa da importância da consciência moral, como condição apodíctica de progressão para o conhecimento/reconhecimento e enaltecimento do ser humano como pessoa singular e consequentemente como pertencente a uma comunidade. Tentaremos explicar numa terceira parte do trabalho como é necessário o reconhecimento pela importância do outro em toda a sua alteridade, o respeito por si próprio e dentro duma sociedade, e que tal só será possível através do pathos individual que envolve deliberação e dedicação a valores (que são também virtudes) mais altos – ao altruísmo, ao bem e a uma ascese que independentemente de qualquer moral social ou ética individual, se manifesta sempre da melhor forma desde que haja a intenção pura e mediada de os praticar.
Pretende-se fundamentar com estas opiniões, que tem em comum a vontade racional de caminhar para uma solução que passa pelo melhor uso da tolerância, a não despenalização das ditas drogas leves, que ao nosso ver, não devem ser aceites como algo que possa ser tolerado.



3 – Aplicação da Tolerância ao tema escolhido

3.1 – Vantagens e Desvantagens sob a perspectiva adoptada

Pelos quatro autores escolhidos e não querendo dizer que outros não teriam algo igualmente bom a acrescentar ao tema escolhido (tornando-se talvez até mais fácil de defender o nosso ponto de vista), temos em conta que estas perspectivas com pontos em comum acima expostas, não nos ajudarão por vezes da melhor forma sobre o tema da despenalização das drogas leves, correndo o risco de parecerem idealistas quase, mas escolhemo-las apostando na convicção de prioridades estabelecidas.
Estamos em crer que uma despenalização das drogas leves seria admitir que qualquer política para tratar o problema teria falhado e consideraríamos isso como um “baixar de braços” e um atestado, por parte dos responsáveis, de fraqueza. Se inicialmente se constatou que a droga era um malefício e se se resolveu combatê-la, não faz sentido mudar-se de opinião só porque esta não resulta e quando se vê que os malefícios continuam, faz sentido sim, mudar de modus operandis. A nossa proposta assenta na educação de base, numa educação filosófica que pretenda ensinar e educar para que se saiba escolher correctamente. Por estes quatro autores que defendem a virtude de ser-se tolerante dentro da ordem racional, terá que se passar por uma filtração de valores a considerar, nomeadamente os da própria pessoa que pela sua consciência e razão chegará à melhor escolha tranquila e convenientemente. Conhecimento é poder e só pelo conhecimento a pessoa se poderá desenvolver e tomar o melhor rumo, cumprir-se e cumprir para com os outros, «viver com» os outros.


3.1.1 – Implicações ético/pessoais
Como já se percebeu numa primeira parte do trabalho, as implicações de saúde que um consumidor de drogas leves pode passar são muitas e variadas. A pessoa mesmo numa primeira fase esporádica, sempre que consome torna-se noutra, ainda que momentaneamente. Não queremos entrar no campo da psicologia, mas entendemos que a explicação filosófica será mais profunda do que a desta ciência experimental para o assunto tratado e portanto complementamos com a nossa breve impressão visto que as formas de análise são diferentes.
O consumidor ao fazer uso da droga fá-lo por alguma razão, a droga não é propriamente virar uma esquina distraidamente, é uma mudança de rumo voluntária e consciente mas induzida em erro. A pessoa estará possivelmente iludida ao pensar que com o uso de algum estupefaciente a sua realidade estará a ser mudada pela positiva, contrariamente, em vez de pensar que a está a agravar.
A droga subtrai, nunca acrescenta nada ao sujeito. Há, como já foi dito, uma obnubilação da consciência, o consumidor com o tempo perde paciência e interesse no pensar, simplesmente porque com as drogas não o consegue fazer bem e a verdade é que nem o quer fazer, tem o pensamento obscurecido, perde prioridades e pensa que as está a resolver a consumir porque o efeito é de alheamento. Baudelaire em “Artificial Paradises: on hashish and wine as means of expanding individuality” cria uma imagem através de metáforas, de como o sujeito se vai sentindo aos poucos pela viagem através do consumo do vinho e do haxixe (forma retirada da Cannabis), e lá está bem evidenciada a forma de prazer com que o sujeito se deixa levar para uma outra dimensão que já não é a sua, embarca no sono do prazer fácil e pseudo-descomprometido, que lhe parece ser uma eternidade quando constata que não passou dum minuto. Por fim, o sujeito sente-se, como lhe chamam os orientais, num estado sem descrição, chamado de “kef” que é o de completa felicidade. Diz Baudelaire que este é um estado de completa harmonia e sem tumultos, de calma e de beatitude, que é como que se todos os problemas filosóficos estivessem resolvidos e se tornassem subitamente transparentes, onde todas as contradições se reconciliam e quando o homem sente que superou Deus.
Com este texto de Baudelaire, pudemos entender um pouco da magia negra que enfeitiça tantas pessoas, ao ponto de não pensarem em consequências maiores. Pensamos contudo, que a atitude de recorrer ao consumo não se pode desculpar com algum problema do sujeito, este terá que aprender a lidar com as dificuldades da vida de uma forma firme e não da forma que lhe parece mais fácil e que não resolve nada. Não se pode ser tolerante para com quem opta deliberadamente fazer algo que não lhe trará benefícios nem a si nem a outros, e mesmo que não houvessem consequências para a saúde do consumidor, o estado em que fica fomenta uma separação da realidade partilhada com o outro, deixa de haver qualquer tipo de cumplicidade em comum.


3.1.2 – Implicações sóciais/interrelacionais

Nesta vertente poder-se-á dizer que seja talvez a mais penalizante para o consumidor na sociedade em que está inserido. Há efectivamente quem tolere o consumo de drogas leves e há também aqueles que não a toleram. A questão é que apesar de se tolerar a atitude mesmo que não se aceite bem, faz com que se perca algum respeito pela pessoa. Pode-se respeitar a pessoa e não tolerar a atitude, como nos diz Julie Saada-Gendron, mas também, a nosso ver, se pode passar a respeitar menos, devido a atitudes que se tenha.
Os seres humanos agrupam-se em sociedades, unem-se por valores, amam-se por desgraças em comum, por química, por objectivos, por amizade - o facto é que tem sempre algo que é partilhado seja pelo bem ou pelo mal, mas quando tudo isso se perde e fica o vazio do irreconhecimento, perde-se o respeito dos outros e seguidamente por nós próprios pelo reconhecimento das nossas atitudes, quando isso acontece. O maior problema é que o consumidor da droga está quase sempre convencido que não há problema nenhum e que não faz mal a ninguém, e tal como o terrorista, usa dos direitos de recorrer e alegar tolerância para si não a dando por sua vez aos outros que sabe não partilharem da sua opinião. Vai-se tornando aos poucos, consoante o consumo, uma pessoa com outros interesses que não passam já pelos do reconhecimento das regras da sociedade, esquece o contracto para com aqueles com que está inserido e torna-se marginal. É de repente outra pessoa que não se “encaixa” nos valores sociais comuns.
O certo é que a globalização trouxe consigo a moda do ser diferente quase à força, como que à procura duma moral desesperada de afirmação, do “vive e deixa viver” já à maneira de dizer de Jean-Marc Trigeaud, e que também nos traz vários problemas. Se por um lado, a pessoa não quer aderir ao comummente aceite socialmente, estaria em pleno direito seguindo esta ética do “vive e deixa viver” mas quando e apenas, o que escolhe fazer não remete consequências para outros. Não é o caso, a droga como bem se sabe, remete sempre para o próximo, afectando e tomando uma dimensão interrelacional. Como nos diz e bem ainda este autor, a tolerância tem que ser repensada e adequada a esta nova realidade global e pluralista. Não podemos aceitar que uns tomem o caminho que crêem mais fácil prejudicando-se a si e aos outros, esta não pode ser uma atitude tolerável. Para que fosse tolerável seria preciso que não nos importássemos uns com os outros e logo que não tivéssemos o devido respeito por eles. Como ser-se tolerante se o canal da mediação está bloqueado? Se o «viver com» implica uma racionalização de valores e se já não os reconheço no outro que me é tão diferente, tornando-se até absurdo, como respeitá-lo? A resposta a nosso ver será a origem da diferença, que neste caso não é uma diferença aceitável. Mesmo que tenha respeito pela pessoa e não pelas suas atitudes que vão contra as minhas, perde-se também a confiança, visto que a pessoa sob o efeito de estupefacientes se torna imprevisível. Outro ponto importante para o prejuízo da teia social do consumidor, será a ideia que todos aqueles que não consomem drogas tem do ser humano. Neste ponto, a ideia tida em comum será a de que as drogas alteram a capacidade psíquica de quem as toma e que fazem mal, logo essas pessoas optaram por dar de si o que receberam naturalmente pela biologia, cultura e capacidade de enriquecimento vivencial e/ou pelo seu processo de personalização ao longo das experiências vividas.
Logo, o que se extrai daqui será o juízo, mesmo que inconscientemente feito, ao outro, porque há sempre um termo de comparação – nós próprios.
Se deixássemos as drogas leves ao cuidado de cada um, se houvesse portanto uma despenalização, num país como Portugal, só poderia haver caos. A bem ver, pelos dados estatísticos que verificamos todos os dias pelos noticiários, a consequência seria parecida – o álcool que tem limite de consumo não é de todo respeitado, não deve haver dia em que a polícia ao fazer “stop’s” não apanhe alguém nas estradas, a maioria de acidentes são por causa de álcool, o tabaco mata todos os dias milhares de pessoas, os medicamentos em abuso são causa de enormes dependências levando mesmo à morte, e isto apenas para mencionar as substâncias que são legais. Com tudo isto onde está o uso da razão dos portugueses? A teoria alegada do “fruto proibido” é apenas passar um atestado de infantilidade àqueles que não querem ter trabalho de pensar no que estão a fazer e que parece não se importarem com o que os que os rodeiam sentem. A partir da altura em que sabemos pertencer a uma comunidade, devemos nos integrar nela e respeitar as suas regras nem que seja por saber que são para o nosso bem, neste caso das drogas leves, não se encontram vantagens nenhumas para o consumidor que não se encontrem num bom copo de leite morno à noite ou num banho quente de emersão.
O uso de drogas leves é um egoísmo disfarçado em alegações infantis. É preciso trabalhar-se mais sobre a noção de ideia de ser humano e nisto é a religião Cristã boa professora, contudo não é de perto a única solução, qualquer associativismo tem essa vertente de dinamizar a pessoa passando-lhe valores de altruísmo e de bem ao próximo. É também através da educação filosófica, do questionamento, que se chega às melhores conclusões, pois quem cresce a beber teorias sem as questionar não saberá detectar erros morais.


3.1.3- Implicações políticas/económicas

As maiores bases de defesa para a despenalização das drogas leves estão, no nosso entender, a favor da Economia, dos mercados. Está assente que o mercado da droga, leves ou duras, é o terceiro mais rico mundialmente. Ora, a defesa de quem quer liberalizar este comércio assenta precisamente em fazer com que este passe de ilegal para legal e assim, haver menos crimes. Haveria também, com a liberalização das drogas leves uma pequena vantagem, a de não haver contacto do pequeno consumidor com o traficante. Mas essa é também uma vantagem apenas em caso de haver a desvantagem maior, a despenalização das drogas leves. Não a havendo, quem alega que a passagem do consumo de drogas leves para as duras não é consequente, pode perfeitamente continuar a comprar sem qualquer risco. A nosso ver, esse elo existe, se há uma percentagem de quem tenha começado a consumir directamente as drogas duras, essa percentagem deverá ser mínima. O normal e rotineiro, até porque a droga se consome como que em ritual, há passagens e formas de consumo progressivas em que quem começa por consumir alguma das formas de Cannabis, tem mais probabilidades de experimentar as duras, como a cocaína e os opiáceos, por exemplo.
A despenalização e liberalização levariam a um maior controlo do comércio e o produto não aumentaria de valor, poderia até baixar se a procura diminuísse, o que também não cremos que acontecesse.
Mesmo que acontecesse o previsto pela Psicologia Social citado no relatório mundial de droga lançado pela ONU em 1997, a droga permaneceria com o seu lugar ao sol, são apenas medidas e consequências previstas que não eliminariam nem tão pouco melhorariam a educação para a mencionada escolha racional. Não é pois, com o comércio ou economia de mercado que as autoridades se deveriam preocupar primeiramente, mas sim, com a revolta da consciência, com uma política de educação pensada para o efeito, com disciplinas integradas no currículo dos alunos que os fizessem pensar nas suas acções futuras. O mercado da droga é apenas uma consequência de más políticas, não é causa de consumo.



3.2 – Apreciação crítica:

Higienização das consciências – A procura desesperada por uma moral individual

A era neo-individualista apresenta duas faces: uma liberal-experimental-pragmática, a outra proibicionista e ultra-repressiva. O momento actual está manifestamente empenhado nesta luta entre vias. Mas o desafio da droga está apenas no início, os custos orçamentais do combate anti-droga aumentam incessantemente, a oferta e a procura crescem, os crimes e os delitos ligados à droga correspondem a mais de um terço das prisões mundiais, a totalidade das apreensões representa apenas 5 a 10% do tráfico. Nada impede que se pense que, no futuro, seja possível encontrar alternativas a estas vias, e não se pretende de forma alguma optar pela via ultra-repressiva, proibicionista sim, mas antes por uma educação que não nos faça ter que enveredar pela repressão. O facto é que a ideia de humanidade tornou-se para nós algo vago. Todos os dias vemos desgraças do outro lado do mundo e por vezes até bem perto, optamos por não ver ou por não pensar muito nisso para não nos chatearmos e assim deixa de nos doer ver tanta miséria. Confortamo-nos em dizer uns aos outros que temos sorte, que vivemos num cantinho seguro e que bem bom que não foi connosco, tornámo-nos frios para com a realidade, as notícias são quase filmes de ficção e quando nos acontece algo não sabemos lidar com isso. Aparecem depressões e caminhos fáceis para resolvê-las.
Temos urgência em aprender a ser solidários e não só para nos sentirmos bem apenas connosco, mas para dar o nosso melhor ao outro, temos urgência em ir ao baú buscar fé e esperança que aliada à vontade dá vida aos actos, urgência em despir o preto de luto e dar entrada a pelo menos um dia de Carnaval saudável.



[1] United Nations International Drug Control Programme (UNDCP). World Drug Report.




Bibliografia

Obras

Lipovetsky, Gilles, O Crepúsculo do Dever – A ética indolor dos novos tempos democráticos. Publicações D. Quixote, Colecção D. Quixote 10, Lisboa, 2004.

Saada-Gendron, Julie, La Tolérance, Publicação Paris Flammarion, Colecção G.F. Corpus, 1999, pp. 11-41.

Trigeaud, Jean-Marc, Justice et Tolérance, Éditions Biére, Bibliothéque de Philosophie Comparée, Philosophie du Droit, 14. pp. 181-193.


Estudos

Héritier, Françoise, “O eu, o outro e a tolerância”, pp. 111-119.

Patrão Neves, Maria do Céu, “Tolerância: Entre o absolutismo e o indiferentismo morais”, Brotéria 155, 2002, pp. 31-39.

MacCoun, R.J., “Drugs and the law: a psychological analysis of drug prohibition”, Psychological Bulletin, 1993, 113(3), pp. 497-512.

“United Nations Internacional Drug Control Programme (UNDCP)”. World Drug Report. Oxford: Oxford University Press, 1997. Regulamentation-Legalization, Debate Section: http://www.unodc.org/adhoc/world_drug_report_1997/ch5/5bleg.pdf.



Páginas World Wide Web (links)


http://www.unesco.org/tolerance
htto://www.portaldrogas.com/
http://www.drogas.pt/
http://abcdasaude.com.br/